O Coringa

Sobre o que fala esse filme
por Dr. Maurício Nascimento Verreschi
Psiquiatra | CRM 91.294

O “Coringa”, assim como a carta do baralho, compõe diversos “jogos” e interpretações. Esta será uma leitura possível baseada em duas de minhas paixões: a Psiquiatria e a Política

Arthur Fleck foi criado com a ideia de que veio ao mundo para trazer o sorriso às pessoas.

Inseguro e pueril, ele não entende o humor. Suas risada são incontroláveis, inapropriadas e acontecem fora de contexto, geralmente em situações de grande estresse ou tristeza – em psiquiatria, “Paratimia”, um afeto inapropriado para a situação, frequente nas esquizofrenias.  Arthur tenta entender o humor através de sua lógica, dissecando sua estrutura, mas ele não as entende, e o resultado não é engraçado. Pelo contrário, sua fragilidade incomoda, causa “vergonha alheia”, compaixão. Confessa a certa altura que “nunca teve um pensamento bom” em sua vida.

Trabalha de palhaço, faz anúncios de rua. Passa por diversas humilhações. Sua vida é de sofrimento intenso. Sua paternidade é incerta e ao longo do filme, desconfia também de sua mãe, poderia ter sido adotado ou ainda ser o filho ilegítimo de um milionário. Nenhuma narrativa se confirma. Podem ser todas fruto de sua mente perturbada. Este enredo também é comum às psicoses, em que a pessoa acredita ser um estranho em sua própria família, ou que seus membros tenham sido substituídos.

Sofreu maus-tratos na infância, foi internado no Hospício. Em toda a história, o ambiente é sempre estranhamente sombrio e o tecido social adoecido. O lixo se amontoa pelas ruas e calçadas e uma infestação de ratos gigantes ameaça a cidade, que sofre com a ineficiência dos serviços públicos e corrupção noticiada a insistentemente pela imprensa. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

A perspectiva de uma eleição percorre o filme e o candidato mais forte é o milionário Thomas Wayne, que se coloca como a grande alternativa a “tudo que está ali”. Grande ironia ao populismo, sem esconder seu viés elitista e autoritário, chama a população de palhaça. Não há solidariedade  e o clima é de isolamento, exclusão. Cada um vive para si.

Arthur é um “marginal” na sociedade. Sua vida não importa a ninguém. Agoniza, calado a falta de resposta às cartas de súplicas de sua mãe. O milionário poderia ser o seu pai? Uma estranha o cumprimenta no elevador – o suficiente para iniciar um relacionamento amoroso “imaginário”. Delicadamente, o diretor vai apresentando as alterações de percepção da realidade, do pensamento paranóide e as alucinações.

O vínculo com a Assistente Social e o Sistema de Saúde são o que o mantém minimamente “equilibrado” e “funcional”. Precários, são rompidos com o corte de verbas, ao mesmo tempo em que perde seu emprego. Entram então os fatores estressores para o agravamento da doença.

Sua maior diversão é assistir ao programa do Murray (De Niro), a que assiste todas as noites com sua mãe. Até então, uma figura paterna e protetora, o que se mostra um sonho vai se tornando aos poucos um pesadelo.

A conjunção do desconhecimento de sua origem, maus-tratos na infância, marginalidade social, doença mental, interrupção do acompanhamento provocam uma ruptura. Neste ponto a genialidade da interpretação do ator. Sua risada agora é a da justiça ressentida, da revolta contra o Sistema, da ruptura com o “pacto social”, da denúncia da “normalidade” hipócrita. Admirado pelo ato, pela coragem, inicia involuntariamente uma “rebelião” popular contra o Poder estabelecido.

O que mais incomoda no filme, e a meu ver o que realmente provoca medo e temor nas pessoas, é justamente a identificação com a representação do mundo mental do Coringa. Todos, em maior ou menor grau, em diferentes contextos de vida, já sentimos de alguma forma a exclusão, sofremos violência, a indiferença, o preconceito, o rebaixamento, a humilhação. Enfim, uma sociedade que divide as pessoas entre  “winners” e “losers”, “vencedores” e “perdedores”, estes últimos, a grande maioria. Pois bem, o Coringa rompe com este pacto. Ele se insurge contra a opressão. Inspirados no seu exemplo, a população inicia uma rebelião, instaurando o caos social.

O Coringa questiona nossa própria identidade,  nossa “conformidade” , a passividade em relação ao “pacto social” excludente. Aceitar o estado das coisas é ser feito de “palhaço”.Queremos estar incluídos numa sociedade que cada vez mais nos fecha as portas.

Enfim, questiona-se os próprios conceitos de “loucura” e “sanidade”. Os “sãos” seriam aqueles que agem de acordo com o sistema ou seriam os que o questionam?

Neste ponto, surge a Psiquiatria enquanto instrumental de dominação e “normatização” das condutas. Tudo o que não é “adequado” se torna “Transtorno”, doença..

As sombras não têm lugar nas paredes assépticas do Hospital Psiquiátrico. A realidade sombria do mundo contrasta  à “luz excessivamente clara”, o “Iluminismo” cientificista da Razão Psiquiátrica e seu modo de produção da “sanidade”. Iluminar os porões do inconsciente, domestica-lo, “trazê-lo à razão” através de mais isolamento e repressão, ou seja, uma polícia do comportamento, de manutenção do sistema, ao invés de alívio a algum sofrimento.

Negar o sofrimento de Arthur é negar o sofrimento de cada um de nós. Seu riso é libertário, contra a opressão e a hipocrisia.

Como previu sua mãe,ele trouxe um sorriso às pessoas. Não um sorriso  inocente , mas sim,  questionador.

O filme instiga, pois mostra nossas próprias sombras, ainda mais definidas à luz da razão, utilizada ali para perpetuar a desigualdade e exclusão.

O humor surge enfim na última cena. Amarrado e contido novamente no Hospital Psiquiátrico, Arthur ironiza a falta de compreensão de sua mente, escapa da terapeuta e dos enfermeiros ao som de “That’s life”, do Sinatra. Assim como em “Laranja Mecânica”, o desejo se impõe à razão, a despeito de toda ciência de repressão, incapaz de conter e domesticar a loucura.

Temos dentro de nós a inconformidade, a revolta, o sofrimento, a dor, pois delas também são a beleza e complexidade da vida. O Coringa é  uma fábula desta representação.

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